21 de outubro de 2011

Relatos de um Bardo Cientista: como o RPG entrou na minha vida, ou como eu entrei no mundo do RPG


O início de uma era (Ou "Como me tornei jogador de nível 1")

               Venham, nobres companheiros! Sentem-se à volta da mesa, ou próximos à lareira nessa noite fria e chuvosa! Peguem uma caneca dessa cerveja das terras anãs, ou talvez alguma donzela prefira um fino vinho dos elfos ou uma das misturas dos gnomos! Peçam o que quiserem ao taverneiro: hidromel, água, leite, queijo, carne de javali, basilisco ou o que mais agradar a vossos paladares exóticos. Saboreiem suas refeições e suas bebidas enquanto descansam de suas aventuras e ouvem o relato do início da minha própria jornada!
Como nasce um RPGista
                Sempre tive uma fascinação por fantasia medieval. Desde criança, sentia muito mais empolgação ao assistir um desenho animado que envolvesse castelos, dragões, lutas com espadas e magias, do que ao ver um gato cinza correr atrás de um rato marrom (não que eu também não gostasse desses outros, que fique claro!). Adorava ouvir e ler histórias da corte do Rei Artur em Camelot, com Sir Lancelot e Merlin ao seu lado. Ficava horas e horas brincando com amigos imaginários: éramos cavaleiros, magos, reis e príncipes, em missões para salvar princesas raptadas por ladrões, dragões e feiticeiros malignos, ou para proteger a vila que estava sendo atacada por monstros. Às vezes, meus amigos imaginários (coisa comum para alguém que não tem irmãos mais velhos ou cuja diferença de idade para os mais novos seja grande) eram substituídos por outras crianças da vizinhança. Claro, nem sempre seguíamos a ideia da fantasia medieval. Podíamos ser cowboys que perseguiam bandidos à procura de recompensas, caçadores de monstros, ou integrantes de uma nave espacial de última geração, explorando os planetas mais distantes do universo. A nossa imaginação era o limite. Não haviam regras. Claro, nem todos chegavam a um consenso sobre as situações imaginadas: um não aceitava ter sido atingido por um tiro, outro não concordava que o dragão fugisse, entre outras coisas. Mas nada disso tirava a diversão das inúmeras tardes da infância.
Sem regras. Puramente diversão.
                Como eu disse antes, também adorava ler histórias. Nos dias chuvosos, ou quando ficava doente, ou não podia sair de casa por alguma razão, sempre estava com um livro por perto. As histórias de aventura, mistério e suspense me entretiam por horas. Ou jogava video-games, o que reforçava ainda mais a vontade de ser um herói (“Thanks, Mario! But our princess is in another castle!” era a frase que eu mais gostava e detestava ao mesmo tempo na época de NES). Pois bem. Muita gente que se deparar com isso pensará “Grande coisa. Eu também fazia isso, você não é um “senhor especial” coisa nenhuma.”. OK, não me julgo diferente de qualquer outra pessoa que tenha tido uma infância saudável e feliz. Mas não sei, algo nessas viagens imaginárias me faziam o sangue agitar. Não sabia o que era, mas, enquanto eu continuasse brincando, eu me esquecia completamente do mundo real. Era como se as almofadas realmente fossem rochas ou arbustos, o sofá fosse a montanha rodeada pela lava do tapete da sala, e o caminho do quintal fosse a ponte sobre o abismo infinito. O fato é que eu nunca me cansava dessas brincadeiras.
Infinitamente mais interessante. Um calango poderia ser Tiamat!
                Até um dia em que, inesperadamente, conheci uma série de livros. Estava eu com meus seis ou sete anos na época, se me lembro bem. Estava na casa de uma coleguinha de escola, com mais um amigo, quando o irmão mais velho dela se ofereceu para brincar conosco. Ele disse que ia contar uma história, mas que cada um daria um rumo diferente à mesma história. Ele pegou então um livro pequeno,  cujo verso era de cor verde. Ele entregou um dado para cada um de nós e começou a ler o livro. Não me lembro bem do contexto da história que ele lia, lembro apenas das opções que nos eram oferecidas: “Quer ir para o norte? Para o leste? Para o sul? Voltar por onde veio?”. Cada um de nós tomava direções diferentes, e o irmão da menina folheava o livro a cada resposta de cada um de nós. Não me lembro de quanto tempo ficamos naquele jogo, mas, se não me engano, os caminhos que eu havia escolhido, junto com um azar peculiar que costuma me perseguir me levaram à morte nas mãos de algum monstro. Um vampiro, se a memória não falha. Mas não importava. Eu realmente gostei daquele livro que deixava que eu tomasse as decisões como se fosse um dos personagens! Perguntei onde ele havia encontrado, e ele me disse que em qualquer livraria eu encontraria livros como aquele. Naquele dia, eu conheci a famosa série “Aventuras Fantásticas”. Não preciso dizer que não sosseguei enquanto não pudesse ter um livro daqueles para mim. Lembro-me – e tenho até hoje – do primeiro que ganhei. “Robô Comando”. No livro, eu era um fazendeiro que teve sua nação inteira envenenada com uma toxina causadora de sono profundo por um país inimigo, e se descobriu em meio a um grande conflito. Tinha que recorrer ao uso de diversos robôs diferentes para sobreviver e acabar com a ameaça. Joguei até praticamente decorar as opções disponíveis. Depois vieram outros. “A Cripta do Vampiro”, “Calabouço da Morte”, “Encontro com o M.E.D.O.”, etc. Até que ganhei um outro, que não era da série “Aventuras Fantásticas”, mas que seguia a mesma linha. Não me lembro o nome, e infelizmente ele se perdeu em alguma mudança. Mas nesse livro – finalmente – eu tive a oportunidade de ser um cavaleiro. Na verdade um viajante do tempo, que ficou preso na Idade Média e acabou se tornando um cavaleiro e responsável pela vitória do reino no final. Mas pouco importava. Eu finalmente consegui ser um cavaleiro!
As primeiras aventuras a gente nunca esquece, né?
                Pois bem, a partir daí, muitos já conhecem a progressão da história, ou mais ou menos os próximos capítulos: lembro-me de, em outra oportunidade que fui à casa dessa minha amiga, ter visto o irmão dela com um livro preto, em cuja capa se lia “GURPS – Módulo Básico”, e outras três letras: RPG. Folheei-o um pouco, e percebi que se tratava de algo como as “Aventuras Fantásticas”, mas mais aprofundado. Porém, não perguntei como se jogava, tampouco pedi para jogar. Mas eu descobri que as “Aventuras Fantásticas” eram apenas um começo, apenas a ponta do iceberg. Mas, além disso, o que diabos aquelas três letras, R, P e G significavam? Essa pergunta martelou em minha mente por um tempo, mas resolvi buscar as respostas por conta própria, como um aprendiz de mago que percebe o momento de sair da tutela de seu mentor, ou um bardo iniciante que procura escrever e cantar suas próprias histórias. Ou um cientista curioso, em busca de explicações.
                Poucos meses depois, estava em uma livraria. Eu gostava de ir às livrarias quando ia com meus pais comprar alguma coisa nos shoppings. Sempre descobria um ou outro livro legal por lá. Pois bem, eu estava em uma livraria, e vi um livro gigantesco e pesado, de capa preta. Haviam algumas coisas escritas em inglês na capa, e, logo abaixo, a imagem de um cara usando um capacete viking (ou pelo menos, na minha mente de nove anos, era viking. Mais tarde descobri que os elmos vikings NÃO tinham chifres!) brandindo um machado acima da cabeça, com uma porta explodindo por causa da porrada que ele havia desferido para quebrá-la. Atrás desse cara, estava um outro, com barba e bigode pontudos, cujas mãos estavam envoltas em uma energia mágica, e um terceiro, carregando um arco e flecha. Na lateral do livro, estava escrito, em imensas letras vermelhas “Livro do Jogador”. Imediatamente me lembrei do tal “Módulo Básico”. Então era aquilo. Aquele era o próximo passo, a etapa além das “Aventuras Fantásticas”. Depois de alguns minutos insistindo, eu saía da livraria carregando o bendito livro. Na primeira folheada, me deparava com imagens fantásticas, de cavaleiros, magos, feiticeiros, fenômenos mágicos, castelos, monstros e tudo o mais. As palavras também eram animadoras: “personagens”, “guerreiro”, “mago”, “ilusionista”, "paladino", "bardo", "druida", “jogadores”, “tesouros”, “recompensas”, “magias”, etc. Haviam tabelas e mais tabelas, e referências a dados que eu nunca havia visto na vida: “d4, d8, d10, d12, d20 e d100”.  Pensei “Vou ter trabalho para aprender isso tudo. Mas no final, vai valer a pena!”. Dito e feito. Foram dias e dias lendo e relendo aquele livro, aprendendo a mecânica do jogo, buscando os benditos dados diferentes, aprendendo a montar fichas de personagem, montando fichas para os personagens que povoavam minha imaginação. Perdi a conta das inúmeras planilhas que imaginei para o Conan, Robin Hood, Lady Marion, Sir Lancelot e a feiticeira Morgana. A partir da leitura do livro, percebi que as histórias estavam todas na minha cabeça, que a imaginação era o limite. Era como as brincadeiras da época dos meus 4, 5 e 6 anos, porém, haviam regras para decidir se a flecha que eu atirei acertou, ou se o dragão iria realmente fugir. Meus olhos brilhavam. Eu estava me introduzindo no fantástico mundo de Advanced Dungeons & Dragons. O fantástico mundo do RPG. Role Playing Game, ou jogo de interpretação de papéis.
Ainda tenho o meu. E é da Editora Abril!
                O restante da história não é difícil de se imaginar: conheci outros jogadores, integrei alguns grupos, conheci outros sistemas. Eu descobri que não precisava ser somente um herói de fantasia medieval. Descobri que poderia ser um contrabandista espacial, um cavaleiro Jedi, um lobisomem cowboy, um guerrilheiro urbano com implantes cibernéticos por todo o corpo, um gnomo cientista, uma criança capaz de derrubar um prédio com um disparo de sua arma d’água ou um vampiro cansado de viver entre seu rebanho mortal. Raios, eu poderia ser até mesmo um vilão, um monstro assassino sedento por sangue de heróis iniciantes e estúpidos, se eu quisesse! O único limite era a imaginação. E se as regras se tornassem um empecilho? Bastava invocar a famosa “Regra de Ouro”, presente nos livros de Storyteller: “Se uma regra vai contra a história ou sua imaginação, ignore-a.” (REIN-HAGEN, M.). Eu podia criar as minhas próprias histórias, e meus amigos seriam os personagens principais das mesmas.
Sim, é possível jogar "do outro lado"!
          Hoje, 15 anos depois de ter encontrado na livraria meu Livro do Jogador de AD&D, muita coisa mudou. O tempo passou, alguns sistemas mudaram, alguns jogadores se tornaram aventureiros aposentados, outros ficaram pelo meio do caminho, esperando pela ressurreição para o jogo, ou cruzaram a fronteira para o mundo real de vez. Meus amigos de infância cresceram, e eu também (embora não muito. Consegui  ficar menor que o baixinho Romário!). Agora já não temos tanto tempo disponível para jogar como antigamente, temos trabalho, faculdade, outras obrigações, e namoradas. Às vezes também falta a mesma resistência para enfrentar noites inteiras à volta da mesa. Alguns (como eu, no caso do meu grupo) moram até mesmo em outra cidade, mas não perdemos a oportunidade de nos reunirmos e assumirmos novamente os papéis de personagens vindos de nossas imaginações.
O fim de uma aventura. Mas que servirá de ponto de partida para outra!
                Alguns podem ver o RPG como um “jogo bobo, de nerd”. Outros, podem ter medo e achar que somos todos praticantes de magia negra. Tratarei desses assuntos mais tarde.  Mas o certo é que essas três letrinhas - que eu descobri quase acidentalmente, me ensinaram muita coisa, renderam (e ainda rendem) a mim e a muitas outras pessoas ao redor desse mundo inúmeras manhãs, tardes e noites de diversão e criação desenfreada, e ainda se mantêm vivas em meu sangue!

               É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Continuem atentos para as próximas postagens! Tratarei de outros assuntos aleatórios e postarei diários de campanha e outros contos aqui no Valhalla RPG, assim que tiver a oportunidade!

"Inverter a Gravidade" e "Teletransporte" que o digam, não é, Einstein?
(IgorMalkavian é estudante de Ciências Biológicas, Jogador, Mestre, orgulhoso por ter nascido em Minas Gerais, Cruzeirense e fanático por video-games, filmes, livros e música. Não necessariamente nessa ordem.)

3 comentários:

  1. Ótimo texto! Muito bem escrito, fácil de acompanhar e delicioso de imaginar cada cena descrita!

    Sempre melhor quando o sentimento poético/romântico é usado para descrever nossa paixão!

    Igor deve mesmo ser um ótimo mestre!

    Parabéns pelo texto, pela inclusão ao Valhalla e pelo ramo de Biólogo ;) (somos 2)

    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. Muito bom o texto! Tirando as variáveis da forma de como cada um conheceu o RPG, acho que relata a realidade da grande maioria de nós rpgistas!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pelo texto. Nota-se muita paixão pela fantasia e leva-me a mim e acredito que a muitos a recuar no tempo. Também li e adorei os livros, "Aventuras Fantásticas", deliciava-me com as imagens e achava uma incrível inovação o poder de escolha.
    No seu texto gostei particularmente da parte, "(...) cruzaram a fronteira para o mundo real de vez". Recuso-me a me render à realidade! Convido-o a si e a todos a visitarem o meu Blog onde coloco os meus escapes à realidade.

    http://pensamento-indescoberto.blogspot.pt/

    ResponderExcluir